domingo, 27 de setembro de 2009

EDUCAÇÃO DE HOJE OU EDUCAÇÃO DE ONTEM? ABORDAGENS

EDUCAÇÃO DE HOJE OU EDUCAÇÃO DE ONTEM? ABORDAGENS
SOBRE A OBRA EDUCACIONAL DE JOHN LOCKE
Ariela dos Santos Canielles1
Avelino da Rosa Oliveira2
Resumo:
O texto apresenta, em geral, a caracterização do momento histórico e da vida do pensador
inglês John Locke, considerado um homem de seu tempo, envolvido sempre com problemas
temporais. Com um recorte histórico acerca do modo como o pensamento revolucionário e
idéias liberais lockianas influenciaram o mundo do conhecimento, da política e da educação,
este trabalho enfatiza, principalmente, a sua abordagem relativa às questões da educação do
gentleman e sua preparação para o novo momento que se instaurava na Inglaterra após a
Revolução Gloriosa em 1688.
Palavras-chave: John Locke. Burguesia. Educação.
Primeiras considerações
Estamos na Inglaterra, no fim século XVII. A recente reviravolta política deixa ver
que o século que se aproxima, o XVIII, trará profundas transformações em todos os campos
da vida social. Uma grande mobilização vem ocorrendo em torno da educação. Intelectuais
começam a perceber a ascensão de uma nova classe social e elaboram propostas educacionais
que lhes parecem mais adequadas aos novos tempos que se avizinham. Agora mesmo, um
médico, que prestou relevantes serviços na luta contra o absolutismo e que há pouco retornou
do exílio, acaba de publicar uma obra intitulada Some Thoughts concerning Education. Como
outras deste tempo, visa preparar o gentleman para esse novo momento histórico que acaba de
ser instaurado com a vitória do Parlamento e a subida ao trono do monarca constitucional
Guilherme de Orange. Temos certeza que o livro marcará época, pois sintetiza magistralmente
os interesses vitoriosos, além de atacar de frente problemas atuais da educação, por exemplo,
1 Acadêmica do curso de Pedagogia, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas. Bolsista
PIBIC/CNPq, integrante do Grupo de Pesquisas FEPráxiS – Filosofia, Educação e Práxis Social. E-mail:
ascanielles@yahoo.com.br
2 Professor titular de Fundamentos da Educação na FaE/UFPel. Desenvolve pesquisas no FEPráxiS, com apoio
da FAPERGS e do CNPq. E-mail: avelino.oliveira@ufpel.edu.br
a sobrecarga da memória, a imposição de tarefas e o emprego dos ineficazes castigos físicos.
Na verdade, o relato acima bem poderia ter ocorrido no tempo de John Locke e referirse
àquele empirista inglês. Entretanto, a suma, seja no que se refere a um projeto educacional
voltado a satisfazer necessidades e aspirações da classe historicamente dominante, seja com
relação a procedimentos didático-pedagógicos retrógrados, parece espelhar a realidade
educacional dos nossos dias.
O presente trabalho visa abordar questões acerca da vida e obra de John Locke,
enfatizando sempre sobre a sua obra educacional, em articulação com o momento histórico
para o qual sua produção foi pensada. A partir dos estudos que temos realizado, acreditamos
que a proposta educacional de Locke foi elaborada para servir de instrumento na formação do
homem, para o novo momento instaurado a partir da Revolução Burguesa de 1688; seu alvo
principal era o comportamento do indivíduo na sociedade burguesa em ascensão, enfatizando
a formação de indivíduos capazes de lutar competentemente por seus interesses.
Buscando dar conta do objetivo, o trabalho será desenvolvido em dois passos
argumentativos. O primeiro fará uma rápida exposição do período histórico focalizado,
apresentando uma visão sobre a sociedade inglesa, enfatizando a decadência do absolutismo,
as relações entre a nobreza e a burguesia e, principalmente, o ascendimento desta classe;
ainda neste sub-capítulo, abordaremos a vida e a obra de Locke, tentando sempre traçar um
paralelo com o que acontecia na sociedade daquele período histórico. No segundo momento,
indicaremos as principais idéias de Locke acerca da educação, a partir da obra Some Thoughts
concerning Education, destacando apenas questões relativas à atuação do indivíduo em
sociedade, o principal alvo deste trabalho. Pensamos que o retorno a autores considerados
clássicos da filosofia permite que conheçamos as influências e a atual estrutura da sociedade e
educação, possibilitando a compreensão de que ambas sofreram e sofrem influências
históricas de diferentes épocas.
John Locke e o seu tempo
John Locke nasceu a 29 de agosto de 1632, em Bristol, na Inglaterra, descendente de
uma família de burgueses comerciantes. Desde cedo, foi influenciado pelo pensamento
revolucionário de seu pai, pelos ideais de sua classe, pela situação política, econômica e
religiosa. Observamos que sua trajetória e formação lhe possibilitaram ser considerado um
homem de seu tempo, ou seja, um homem de boa educação, ótima carreira profissional e
considerável reconhecimento através de suas obras e teorias, além de ter participado de
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importantes processos revolucionários de seu país. Seus textos mais relevantes desde sempre
expressam ideais liberais e defendem interesses políticos e religiosos com um entusiasmo
próprio daqueles atores de sua época, divididos, conforme Strathern (1997), “entre a ‘adesão
irrefletida à tradição’ dos monarquistas e o ‘entusiasmo’ (ou seja, fervor emocional
impensado) dos puritanos.” (p.22) Para que possamos compreender tais influências, são
necessários alguns recortes históricos que ilustram a Inglaterra desse período.
No início do século XVI, a situação econômica da Inglaterra era bastante próspera,
devido à política mercantilista, ao comércio de manufaturas e à pirataria apoiada pelo trono
inglês. Essa situação acaba por fortalecer e enriquecer a burguesia, que passa a estender-se a
outras partes da Europa e a exercer influências, sendo assim, o absolutismo dos Tudor era
voltado para os interesses burgueses. Esta restrita ligação entre a Coroa e os comerciantes
efetivava-se devido a algumas concessões da Coroa, como o monopólio comercial. De outra
parte, os burgueses acabavam retribuindo esta concessão com o apoio financeiro e político às
decisões reais. Os Tudor mantinham o seu poder com aparências de governo popular e
quando intencionados a tomar uma decisão recorriam à formalidade para obter a aprovação
parlamentar. Enfim, era um período em que o poder político era exercido pela Coroa,
constituindo o auge do absolutismo na Inglaterra. Em 1603, com a morte de Elizabeth I,
esgota-se o período da dinastia Tudor, possibilitando um novo período na política e na
economia inglesas.
No século XVII, a situação altera-se, pois a burguesia, cada vez mais fortalecida,
começara a questionar e contradizer os poderes reais. A partir de uma reformulação na
economia e no comércio, surge uma “Nova Burguesia”, dedicada ao setor manufatureiro, em
contraposição ao mercantilismo. Há um fator de suma importância para essa mudança de
interesses – o crescimento numérico da burguesia, impossibilitando que a monarquia
garantisse os interesses e privilégios do comércio exterior a todos, mas apenas de uma minoria
privilegiada, provocando o descontentamento e a mudança de interesses, começando assim
uma série de constantes conflitos entre os burgueses representados pelo parlamento e a
autoridade real.
Outro aspecto que deve ser levado em consideração neste período histórico diz
respeito às religiões e seus interesses na economia e na política. Os diferentes lados
utilizavam a religião como veículo de divulgação e expressão dos interesses políticos. A
Igreja Anglicana, originária da elite da nobreza e dos setores mais ligados à monarquia, era
predominante no poder, tomando partido dos interesses absolutistas que a beneficiava. Já os
católicos, que também tinham suas origens na nobreza feudal, apesar de não concordarem
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com a centralização dos poderes apenas na Coroa, defendiam o absolutismo, com medo de
perderem certas regalias adquiridas com os privilégios feudais. Os calvinistas, apesar de se
dividir em dois grupos – os presbiterianos e os puritanos, que eram advindos da burguesia –,
faziam oposição ao absolutismo. A partir das mudanças econômicas e políticas ocorridas na
Inglaterra no início do século, o absolutismo entra em crise; conseqüentemente, a disputa dos
interesses em jogo permeia também o parlamento.
Como já mencionado, Locke vem de uma família de burgueses comerciantes e é
influenciado pelas idéias revolucionárias de seu pai. A situação na Inglaterra era bastante
tensa, devido à política de imposição de interesses religiosos adotada por Carlos I. Em 1640,
inicia-se uma guerra civil na Inglaterra, motivada pela tentativa de Carlos I dissolver o
Parlamento. Ao lado de Carlos I, ficaram os católicos e anglicanos, formando o exercito
monarquista, ou dos “cavaleiros”. O exército que se opunha a este era chamado de “cabeças
redondas”, defensores do parlamento, formado por presbiterianos e puritanos das camadas
mais humildes. Após sete anos de luta, os “cabeças redondas” venceram. Em seguida,
julgaram e executaram o monarca Carlos I, suprimiram a monarquia e proclamaram a
República na Inglaterra, a chamada Commonwealth. O pai de Locke havia adotado a causa
dos puritanos e tinha se alistado no exército do Parlamento, saindo vencedor deste conflito.
Locke, já com oito anos na época do início do conflito, estudava na Westminster School e
transferiu-se para o Christ Church College, de Oxford, instituição onde primeiramente foi
aluno e depois “fellow”.
Como estudante, seus interesses foram bem diversificados, partindo da química e
meteorologia até a teologia, porém optou por eleger a medicina como atividade profissional.
Nesta, obteve grandes êxitos, através de pesquisas e observação empírica dos seus pacientes e
passou a valorizar a experiência como fonte de conhecimento logrando, com esse estudo,
escrever a primeira obra: Ensaios sobre a Lei da Natureza.
A dedicação à medicina levou-o aos círculos políticos da Inglaterra, tornando-se
médico particular de Ashley Cooper (1621 - 1683) que, posteriormente, tornou-se lorde e
primeiro Conde de Shaftesbury, através de quem Locke alcançou importantes cargos
políticos. Neste período, conviveu com os mais importantes intelectuais da época e redigiu
sua principal obra: Ensaio acerca do Entendimento Humano, que só seria publicado em 1690.
Em 1668, tornou-se membro da Royal Society de Londres. Em 1672, passou a ser secretário
do Conde de Shaftesbury, passando a ter uma vida política mais ativa. Shaftesbury
representava os interesses do parlamento e opunha-se ao rei Carlos II, defensor do
absolutismo . Em 1675, Shaftesbury é destituído do cargo e Locke, obrigado a abandonar as
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atividades políticas, viaja para a França, onde permanece por três anos, convivendo com os
intelectuais de Montpellier e Paris. Em 1679, volta à Inglaterra, em momento de grande
agitação política. Shaftesbury, agora lidera a oposição a Carlos II e, como Presidente do
Conselho Privado, requisita novamente os serviços de Locke. Entretanto, Shaftesbury é
acusado de chefiar uma rebelião para depor o soberano, sendo preso. Diante dos
acontecimentos, Locke pede refúgio na Holanda, onde já existia a liberdade de pensamento.
Embora vivesse no exterior, Locke era perseguido pelos agentes do monarca Inglês, tendo que
se disfarçar com o nome de Dr. Van der Linden. Então, já com a idade de cinqüenta e quatro
anos, relaciona-se com membros importantes da sociedade.
Todos esses conflitos resultaram na Revolução Gloriosa (1688 - 1689), cuja principal
causa pode ser apontada como a política adotada por Carlos II de favorecimento aos católicos,
o que acabou despertando nos patriotas o medo de serem submetidos à condição de
obediência às ordens de Roma. O parlamento uniu-se e ofereceu a coroa Inglesa a um
holandês, Guilherme de Orange, príncipe protestante casado com Maria Stuart, a filha mais
velha de Jaime II. O novo monarca assumiu o trono da Inglaterra em 1688, sem qualquer
resistência ou derramamento de sangue. O significado mais profundo da revolução foi que em
1689 o absolutismo foi substituído pela monarquia constitucional em que a realeza ficava
submetida ao parlamento. “A Revolução de 1688 representa o triunfo da burguesia capitalista,
dos mercadores da City de Londres, dos gentis-homens do campo aburguesados pelo
capitalismo agrícola.” (Mousnier, 1957, p.310)
As obras de John Locke foram publicadas no período entre 1689 e 1690, ao retornar à
Inglaterra, após a vitória do Parlamento na Revolução Gloriosa. Durante esse período,
surgiram as seguintes obras: Carta acerca da Tolerância, Os Dois Tratados sobre o Governo
Civil e o Ensaio sobre o Entendimento Humano. A Carta Sobre a Tolerância deixava
explícita a liberdade da consciência religiosa, diferentemente do que ocorria na época, onde o
Estado obrigava os protestantes a aceitarem e freqüentarem os cultos católicos. Também
estipulava os papéis do Estado e da Religião. Ao primeiro caberia a tarefa de cuidar do bemestar
material e dos interesses civis dos cidadãos, enquanto à religião caberia preocupar-se
com a fé e o culto a Deus. Nos seus escritos sobre política, Locke foi bastante crítico e no
Primeiro Tratado Sobre o Governo Civil, combateu ironicamente a tese de Sir Robert Filmer
(1588 - 1653), defensor do absolutismo dos Stuart. Já o Segundo Tratado mostrava as teses
políticas liberais e sociais de Locke. Na obra Ensaio sobre o Entendimento Humano – a obra
mais divulgada de Locke –, ganha destaque a teoria empirista, enfatizando que o homem
adquire conhecimento através das experiências vividas, não existindo idéias inatas, conforme
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afirmavam os racionalistas. Finalmente, publicou em 1693 a obra educacional Alguns
Pensamentos acerca da Educação, onde utiliza suas idéias sociais, políticas, liberais e seu
conceito empirista para servir de suporte às questões que envolvem o ensino.
É correto afirmar que Locke participou e presenciou importantes acontecimentos de
sua época, lutando sempre pelos ideais de sua classe social. Os últimos anos de sua vida
foram pacatos, no ambiente da situação política gestada pela Revolução Gloriosa, tendo
exercido o cargo de Comissário de Recursos durante dois anos, quando passa a residir nas
Terras de Mashan, onde recebia a visita de seus amigos. Em 1696, assumiu o cargo de
Comissário da Câmara de Comércio e deslocava-se freqüentemente até Londres. Quatro anos
depois, com a saúde debilitada, renunciou ao cargo, dedicando-se a uma vida de meditação e
contemplação. Morreu no dia 27 de outubro de 1704.
A obra educacional como instrumento de formação do homem para os novos tempos
No período em que John Locke esteve refugiado na Holanda, por volta de 1684, um
casal de amigos envia um pedido de instruções para ajudar na criação do filho. Locke escreve,
então, uma longa carta com aconselhamentos acerca do modo como educar os filhos e de
como os pais deveriam agir em determinadas situações. Intitulada Of Education, esta carta é
endereçada aos Clarkes; porém, extraviada pelos correios, a correspondência nunca chegou às
mãos dos destinatários. Só após muito tempo, a carta foi recuperada e encontra-se hoje na
Harvard College Library. Esta é a primeira versão de Some Thoughts concerning Education.
Em 1685, Locke expandiu o rascunho que guardava da carta e enviou aos Clarkes,
com o título Directions concerning Education. Posteriormente, em 1693, a obra foi publicada
com duas tiragens diferentes entre si, agora já intitulada Some Thoughts concerning
Education. Na terceira edição, de 1695, notam-se alterações consideráveis de conteúdo com
relação às anteriores. No ano de 1699, é publicada a quarta edição e em 1705, a quinta. Cabe
ressaltar que a última delas é edição já póstuma e que após a terceira edição há poucas
alterações de conteúdo, mas acumulam-se os erros de composição.
O estudo da obra educacional de Locke revela que ela foi desenvolvida com
intencionalidade bastante ampla, já que se trata de instruções de como educar os filhos,
levando em consideração aspectos a respeito da formação moral e física, saúde, educação,
alimentação, vestuário, atividades físicas, cuidados com os hábitos, supervalorização do
processo de disciplinamento, com ênfase sobre o modo como deveria ser o comportamento e
sobre os conhecimentos que deveriam receber os “gentlemen” para atuar no novo modelo de
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sociedade. Cabe salientar, então, que a proposta educacional de Locke foi elaborada para
servir de instrumento na formação do homem, para o novo momento instaurado a partir da
Revolução Burguesa de 1688 e seu alvo principal era o comportamento do indivíduo na
sociedade burguesa em ascensão, enfatizando a formação de indivíduos capazes de lutar por
seus ideais.
O autor inicia o texto relatando sobre o primeiro cuidado que os pais devem ter na
criação dos filhos, que é o cuidado não somente com o corpo físico, mas também com a mente
das crianças: “Uma mente sã num corpo são” (ST, § 1º)3. Enfatiza que, adquirindo o
equilíbrio, o cidadão atinge um perfeito estado de felicidade, pois o corpo forte e vigoroso é
capaz de exercer com clareza as ordens da mente e desenvolver as atividades diárias.
Quão necessária é a saúde para nossos negócios e felicidade, e quanto
uma constituição forte, capaz de suportar durezas e fadigas, é requisito
para alguém que representará papel importante no mundo é por
demais óbvio para carecer de qualquer prova. (ST, § 3)
Defendendo a educação doméstica do jovem cavalheiro, o preceptor inglês preza o
crescimento intelectual da criança, instituindo, assim, valores individualistas que respaldam
sua atuação na sociedade e menciona que o fato de a criança estar em uma escola não
significa que ela esteja preparada para um melhor convívio social e para os negócios. O autor
enfatiza que sempre que houver a possibilidade da educação caseira, sob o olhar do pai e de
um bom tutor apontando para a melhor formação, esta deve ser preferida.
Mas devo tomar a liberdade de dizer que o Homem que deposita os
fundamentos do êxito de seu filho na virtude e na boa criação escolhe
o único caminho seguro e confiável; e não serão as brincadeiras ou
embustes entre os meninos de escola, não serão asperezas de um para
com outro, nem os ardis bem estabelecidos para juntos roubarem um
pomar que constituem um homem capaz; não será isto, ms os
princípios de justiça, generosidade, e sobriedade, adicionados à
observação e diligência, qualidades as quais julgo que os meninos da
escola, não aprendem muito uns com os outros. (ST, § 70)
Conforme já mencionamos, a obra tem um caráter amplo e destaca a importância que
os pais devem ter em relação à alimentação, vestuário, sono, alimentação, atividade física.
Porém, sendo nosso objetivo mostrar o aspecto da formação do indivíduo para atuar na
sociedade burguesa em formação, oferecemos, no presente texto, mais ênfase a aspectos
3 As citações de Some Thoughts concerning Education estão indicadas pelas iniciais ST e são extraídas da
tradução publicada em Cadernos de Educação.
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relacionados à atuação em sociedade.
Perpassam toda a obra a preocupação e o cuidado do autor quanto ao processo de
disciplinamento, este que deve ocorrer desde cedo para que, quando aconteça o crescimento,
não haja rebeldias e enfrentamentos com os pais. Locke destaca também o cuidado que as
mães devem ter em não oferecer demasiados mimos à criança, uma vez que, segundo Locke,
são elas as grandes causadoras dos problemas disciplinares. Esse processo de disciplinamento
deve ser mantido pelo controle moral. Locke possui aversão aos castigos físicos, salientando
que estes podem despertar mais tarde a ira nos filhos.
Bater, portanto, e todas as outras formas de punição escravas e
corporais não são a disciplina adequada a ser usada na educação
daqueles que queremos que sejam homens sensatos, bons e argutos
(ingenuous); e, por conseqüência, há de ser raramente aplicada, e isto
apenas em ocasiões especiais e casos extremos. (ST, § 52)
Em relação ao disciplinamento, aponta ainda para a importância do estabelecimento de
regras na criação dos filhos, regras essas que devem ser estipuladas, respeitando a idade e a
compreensão das crianças, e aumentadas de acordo com requisitos como a liberdade, conceito
tão caro à teoria política e educacional e tratada, no contexto da obra lockiana, como questão
que irá refletir quando o jovem cavalheiro atuar em meio à sociedade em que vive.
Fazendo um recorte em nossa reflexão e apontando para um aspecto mais específico
relativo à área educacional, afirmamos que Locke critica o método educacional utilizado na
época, ou seja, a sobrecarga da memória das crianças, principalmente no que se refere ao
estabelecimento de regras.
E dai-me licença de aqui observar algo que penso ser um erro no
método tradicional de educação: o carregamento da memória das
crianças, em todas as ocasiões, com regras e preceitos que
freqüentemente elas não entendem e que, constantemente, as
esquecem tão logo dadas. (ST, § 43)
Outro aspecto que deve ser levado em consideração no processo de formação do
homem e na aprendizagem é a imposição das tarefas e dos horários para a aprendizagem. O
autor sublinha que as atividades educativas deveriam ser prazerosas, como uma brincadeira,
em que a criança poderia perguntar e tirar suas dúvidas, facilitando assim o processo de
aprendizagem, uma vez que elas raramente economizam esforços quando estão envolvidas em
uma brincadeira.
Locke enfatiza ainda o cuidado na escolha dos tutores, apontando para a importância
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e a influência dessas pessoas na educação dos filhos. Os preceptores deveriam ser homens,
possuir uma formação adequada para atuar, ser da mesma classe social e possuir diferentes
conhecimentos, evitando assim as más influências dos menos favorecidos. Ganha destaque,
ainda, a postura em relação às habilidades que o tutor deve ter.
O Homem, portanto, que está envolvido com crianças deve estudar
bem suas naturezas e aptidões e ver, através de tentativas freqüentes,
que rumos elas tomam facilmente e o que se tornam, observar qual é
sua bagagem original, como ela pode ser melhorada e para que é
adequada. Deve tomar em consideração o que lhes falta: se eles são
capazes de ter isto trabalhado em seu interior pela diligência, e lá
incorporado pela prática; e se vale a pena esforçar-se por isso. (ST, §
66)
Observa-se também que a obra educacional possui um caráter mais amplo, no sentido
de formação geral, com grande preocupação com a formação moral e com questões
relacionadas à atuação no comércio e na sociedade burguesa em ascensão. Insistimos que o
propósito de Locke foi desenvolver uma teoria educacional para servir de instrumento na
formação do homem protagonista do novo momento instaurado a partir da Revolução.
Concluindo
Os poucos indicadores expostos já são bons indícios de que todo o processo de
mudança e conflitos ocorrido nos séculos XVI e XVII na Inglaterra, ou seja, a decadência do
absolutismo, a luta pela ascensão da burguesia ao poder, as significantes lutas entre as
religiões predominantes, tudo isto influenciou na formação dos indivíduos do seu tempo.
Sendo assim, John Locke esteve sempre exposto a esses fatores, agregando em seu
pensamento os ideais de sua classe social. Deste modo, suas obras acabam refletindo
claramente o contexto histórico vivenciado pelo autor e as posições aí tomadas.
Em especial na obra Some Thoughts concerning Education, John Locke deixa clara a
necessidade de um modelo educacional voltado para a defesa das idéias e dos interesses de
sua classe social, que enfrentara desde o século passado conflitos e revoluções em função da
defesa de um objetivo – sua consolidação no poder. E este novo momento acaba sendo
institucionalizado a partir da Revolução Gloriosa de 1688, que garantiu a substituição do
absolutismo pela monarquia constitucional, em que a realeza ficava submetida ao parlamento.
Este novo momento da burguesia exigia de sua classe uma educação diferenciada, em
que os indivíduos recebessem uma devida preparação para que pudessem atuar habilmente em
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sociedade a fim de continuar levando avante os interesses e os ideais de sua classe. Entretanto,
conseguiriam alcançar seus objetivos apenas se tivessem uma boa constituição física e moral,
sendo assim explicada a preocupação de Locke com o processo educacional mais amplo, que
englobava desde cuidados com a saúde, alimentação, vestuário, hábitos, higiene, equilíbrio da
mente, cuidado com a formação moral, influências, exemplos e, principalmente, o processo de
disciplinamento. Somente uma preparação assim ampla garantiria o comportamento
proveitoso do indivíduo na sociedade.
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